quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Tudo em mim é arrebentação







Eu queria apenas que fosse de verdade, e foi.
Não queria mentir no palco, como já disse; um artista nunca deve mentir, embora muitas vezes a gente minta mesmo.
Há uma semana nasceu o meu novo filho, minha mais nova cria, o solo chamado "A Cadeirinha e Eu". Como também já falei antes trata-se de uma releitura da obra da coreógrafa cearense Silvia Moura, o trabalho original tem 17 anos.
Quando ela me convidou por telefone para fazer parte do projeto (uma ação da 8ª Bienal Internacional de Dança do Ceará), eu como de costume não disse um "sim" logo de cara, nunca digo "sim" sem pensar muito no que isso vai pesar na minha vida, no meu trabalho.
Fiquei pensando: que ligação importante eu poderia ter com este trabalho. Eu praticamente o vi nascer, e ele praticamente nasceu junto comigo como artista. Quero dizer, eu já era artista desde criança, nunca pensei ser outra coisa, pensei ser muitas coisas, mas nunca algo que não fosse ser artista.
No entanto, "A Cadeirinha..." teve sua estréia simultaneamente a minha no palco do Theatro José de Alencar, como eu já disse antes, um lugar sagrado para mim (quando eu morrer eu só vou sentir saudade daquele lugar).
Dois dias depois o David Linhares (curador e idealizador da Bienal de Dança) me liga também, ele como sempre, faz aquela coisa com as palavras que só ele sabe fazer. Me convence!
Topo fazer a "Cadeirinha..." por ele, por ela, pelos outros rapazes, amigos de trabalho, por quem eu tenho deveras carinho.
E aí, depois disso, fiquei meio suspenso, me perguntando: o que é que eu fiz? O que é que eu vou fazer agora? Pensei no tamanho da responsabilidade, e de como é delicado mexer na obra de outro artista.
os dias que se seguiram foram de imersão em mim, nas lembranças da minha adolescência, na Silvia, em nós, no nosso tempo... O tempo passou pra mim, passou pra ela... 17 anos... Agora eu sou um bailarino maduro, experiente e conhecido por meia duzia de pessoas no Brasil. E ela, é uma pessoa que tantos anos depois ainda faz a diferença na dança do Ceará, sempre fez, mesmo quando muito nova. Ela ainda tem os longos cabelos que aos poucos vão se revelando brancos, de um tom prateado que pouco a pouco vai lhe conferindo um ar de "entidade", como uma deusa da dança, uma diva da nossa dança cearense.
Os dias foram se passando, e eu na minha ingênua ilusão de pensar que o projeto era apenas para o ano de 2012, fui pego com as calças na mão quando li uma mensagem da Silvia dando datas das apresentações. Quase enfartei! Era pra vinte dias depois. E como foram longos os dias que se seguiram, dava 30 de outubro e não chegava nunca ao 27. Em contrapartida a tudo isso, eu me mantinha imóvel, praticamente anestesiado por fora, mas por dentro prestes a explodir. Me mantive imóvel, por algum motivo não conseguia ir a sala de aula, não conseguia pensar nada com a "diabinha da cadeirinha",  e a bienal chegando, vi a abertura, vi os outros dias, sempre me cobrando pelo fato de não estar trabalhando obsessivamente na sala de aula, ou em casa vendo os vídeos dos ensaios como sempre faço, deito na cama e vejo mil vezes, é assim que eu funciono, mas desta vez, nada, nada disso, nada de mim! O trabalho foi se construíndo de forma absolutamente maluca, como é a dona do trabalho original. CAPTEI! O espírito da "Silvia e da Cadeirinha" já estava presente ali, naquela aparente desordem.
Então fui levando, fui deixando a coisa ir para onde ela queria ir, apenas fui seguindo, escutando de mancinho, querendo chegar perto dela como a mais humilde das criaturas. Ao invés de ir para sala, eu ia para o meu quintal, ouvia o vento bater nas palmas dos coqueiros, e ia me conectando, aquilo de alguma forma me trazia o mar, me levava de volta para os meus 15 anos. Eu conseguia sentir os meus cabelos longos abaixo dos ombros como tinha na época.
Ahhh, tanta coisa me veio a cabeça, pensei em construir algo falando da nossa relação: Fauller e Silvia, nem sempre tranquila, nem sempre próximos, mas uma vez ela me disse: mesmo nos momentos em que estivemos distantes, o nosso carinho se manteve alí calado. Achei isso lindo, nunca vou esquecer.
Então nos reunimos com os outros dois rapazes que também iriam fazer suas releituras, e eles já estavam com seus trabalhos muito adiantados, falavam com propriedade, e eu alí calado, sem ousar confessar que ainda não tinha feito nada, ai meu Deus, menos de uma semana para a estréia!
Se por um lado eu me desesperava, pelo outro eu me mantinha firme e forte, algo me dizia: vá com a cara e a coragem, você não nasceu ontem.
E foi quase isso, depois da reunião na sexta, enfim resolvi ir para sala no domingo, quatro dias antes do grande dia. Foi tudo muito rápido, foi como se eu estivesse possuído, sabia que havia passado tanto tempo para entrar em sala para digerir tudo que estava vendo, lendo, ouvindo nos ultimos dias, e até mesmo coisas que estavam há tempos guardadas em mim, velhas lembranças, velhos sentimentos. Nada era novo, nada em mim é novo, até o meu visual neste momento é de alguém bastante antigo.
Na terça fomos a praia, eu precisava gravar um vídeo com a Silvia de costas apenas olhando o mar, e o tive que fazer exatamente no dia e hora em que o meu querido avô era sepultado... Ficamos ali, de frente para o mar, perdidos na imensidão, não sei o que ela pensava, mas para mim não havia nada em volta, apenas nós dois, nossas coisas guardadas na mais profunda imensidão do mar.
Sempre que vejo o mar eu encontro respostas para quem eu sou, é nele que eu me reconheço.
E enfim eis que chega o dia D. Era matar ou morrer, como tudo que me cerca havia expectativa, por mais que eu houvesse tentado não fazer estardalhaço.
Confesso que não escolhi nem uma das alternativas, nem matar, nem morrer. Eu queria apenas poder brilhar mais uma vez naquele palco, desde que me entendo por gente eu nunca desejei outra coisa,  se não brilhar, ser uma estrela. E eu digo isso com a mais pura verdade que possa haver em mim. Sempre quis ser uma estrela desde criança. Eu nunca sinto vergonha ou medo de afirmar isso, nunca. 
Era uma data cabalística, naquela exata noite fazia 10 anos que eu havia estreado como coreógrafo com o solo "Um Momento Delicado" e dentro da programação da bienal. Também seria a terceira vez que eu me apresentaria em um 27 de outubro também na bienal.
Ahhhh, tanta coisa se passou pela minha cabeça antes de entrar em cena, todas as coisas importantes da minha vida foram dançadas naquele palco: a estréia mundial do "Cover", o "De-vir" uma única vez apresentado lá, o inesquecível "Perdas Momentâneas da Razão".
Pensei tanta coisa; minhas pernas quiseram tremer. Mas eu não sou homem de deixar perna tremer. Tenho pouco talento pra ser bailarino cagão.
Então, apenas respirei, e esqueci tudo que havia pensado, tudo que foi escrito aqui.
Entrei no palco limpo, como o menino que jamais havia estado ali, e que aos 15 anos e com longos cabelos dançou sobre um palco pela primeira vez. Justo naquele palco!
Na platéia, Silvia, David, outras pessoas da dança, e grandes nomes da dança brasileira.
Na primeira fila Wila (como pensar em divas da dança sem pensar nela? Mas ali ela era apenas a mulher que eu amo), e na coxia, me observando, ele  (o homem que eu amo, esperando para dançar logo em seguida).
Saí de cena tão cheio, tão preenchido.
O mundo podia acabar ali, ao som daquele mar, ao som do piano de Chopin.

Tudo em mim é arrebentação...Tudo em mim absolutamente vivo.





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