sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O tempo De-vir














Faz tempo que não escrevo sobre o De-vir. Muitas cosias mudaram desde que ele foi criado em 2002. Naquela época eu apenas queria trabalhar com corpos nus, partindo da posição de "souplesse en avant", foi essa imagem que deu origem a todo o resto do trabalho.

Nesta mesma época eu me deparei com o livro do pensador português José Gil, o livro "Monstros", e foi justo este livro que nos serviu de referência maior por muitos anos. Arisco a dizer até meados de 2007, quando apresentei o meu trabalho pela primeira vez fora do Brasil, em Berlim, na ocasião.

De lá pra cá muita coisa foi mudando, a estrutura do trabalho mudou, haviam ainda pequenas coisas muito acadêmicas, e muita música. Tirei estas estruturas acadêmicas, e boa parte da música, dali em diante a coisa era mais dura (sem trocadilhos). Eram apenas os corpos, silêncio, as respirações e os sons nos próprios corpos pontuando o silêncio.

Na Alemanha, eles adoraram, ingressos esgotados nos dias anteriores as apresentações. Mas não deixaram de ficar um tanto quanto incomodados, eles acharam que o balé era muito austero pra ser entendido como uma produção brasileira.

As pessoas sempre querendo encontrar um lugar para o meu trabalho, e geralmente um "lugar" que eu mesmo não tenho interesse, ou preocupação em pô-lo.

Mais tarde, precisamente ha pouco tempo em nossa turnê nacional, queriam nos fazer acreditar que o meu trabalho não se parecia em nada com o Ceará, pois não fala de seca, não tem roupa de chita, não tem cactos pelo palco (precisariamos dançar com cactos dentro dos cus para essa dança ser Cearense?).

E eu sempre retrucando parece com o Ceará sim! O que é que você sabe sobre o Ceará?

Quebremos nossas idéias estabelecidas do que seja o lugar do outro, não é porque prefiro música eletrônica, ou jazz, leia Nietzshe e assista Godard que eu não seja daqui. Nem porque alguém seja
do Sul do Brasil que este alguém vá ter um discurso mais articulado que o meu. E eu, e toda a minha equipe de trabalho constatamos isso agora ha pouco também, ao passarmos por várias cidades do Sul do Brasil.

Então, vale ter cuidado com o que é dito e pensado sobre o que venha a ser uma dança feita e pensada no Ceará, no Nordeste, no Brasil, ou em qualquer outro lugar. Vale lembrar Norte é do outro lado, aqui é Nordeste. Odeio quando me falam que adoram as praias do Norte, o Norte não tem praias. E também me ofende quando perguntam como é o Pernambuco. O Nordeste tem nove estados.

Pois bem, voltando ao De-vir, tudo isso aqui também é sobre o De-vir, é transitando que a coisa vai maturando, vai se misturando virando outra, virando do mundo. O De-vir não é mais só do Ceará!

Nosso corpos estão impregnados de cidades, e as cidades também levam consigo um pouco dos nossos corpos, em cada corpo que nos assistiu, em cada corpo que nos ouviu, cada corpo que dividiu conosco a experiência de uma oficina da Cia. Dita. Aqui corpo e cidade cada vez com mais sentido para nós.

Se eu tivesse que criar o De-vir hoje, eu pensaria que ele é um acerto de contas, minha forma de falar ao mundo como nós somos desprovidos de auto-reconhecimento. E aí encontra-se a força política do De-vir hoje, no reconhecimento atráves do outro. O não reconhecimento também é uma forma da coisa acontecer políticamente. Não me incomoddo quando alguém levanta da cadeira e vai embora.

Às vezes eu brinco com a ironia que me cabe, digo que o De-vir é a minha forma de transformar o meu cu em arte, coloco ele pro auto, arreganho, digo que é arte, e as pessoas concordam que é arte. Foi assim que o De-vir foi recebido até por alguns professores meus na época, e por coreógrafos mais experientes que eu, eles diziam pelos corredores da instituição que eu estudava dança, que o trabalho era uma moda de "cus e bucetas", queriam diminuir o meu trabalho, no fundo tinham medo da minha audácia. Se o De-vir foi longe, boa parte devo ao sentimento de ter que provar algo a esses merdas. Hoje eles festejam, dizem que o trabalho é ótimo, sem imaginar que as conversas chegavam até mim.

Os corpos que dançam este trabalho hoje, precisam entender antes de dança-lo que não se trata apenas de repetir uma variação coreográfica, não me interesso apenas pela forma, ela encontra-se alí, mas não como partida, ou chegada, a forma precisa ser habitada por textura e essencia. Um bailairno apenas bonito fisicamente nunca vai dançar o De-vir como ele precisa ser dançado.

Todos os dias cada um de nós tem como exercício trazer um pouco de si, da sua própria vida para a sala de aula, para o trabalho. É um exercício penoso, envolve generosidade. Envolve saber de si. E aí é que a coisa pega, como é que é saber de si. Doi um bocado. os bailarinos que trabalham comigo que o digam, eu quase sempre tenho a impressão que eles metem, sobretudo os mais novos, mas dou os meus descontos, saber de si aos 20 é para poucos.

Eu ainda quero ir no limite do esforço físico, não sabemos até onde vamos aguentar, temos 22, 33, 38 e 47 anos respectivamente. São corpos com formações totalmente diferentes, com formas de lidar consigo e com o que está em volta também de maneiras muito individuais. Então como alimentar a valorização da individualidade, sem cair na armadilha do individualismo? Como seguir sendo grupo, se o individuo é tão importante?

Para seguir dançando o De-vir, é preciso estar atento ao tempo das coisas; internas e externas. Seguir mastigando o tempo.
É preciso tornar-se o próprio tempo.


Fotos: Carolinne Santos


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