terça-feira, 10 de maio de 2011

Sobre depressão, pós-depressão, e a retomada da vida


Em junho de 2005, eu iniciei um projeto com o coreografo francês de descendência árabe Rachid Ouramdane. Era um projeto de grande proporção, uma vez que iríamos circular por toda a Europa. Comigo, outros dois homens brasileiros (cada um de uma raça, só agora a pouco foi que concluí essa escolha do Rachid), e o próprio Rachid, de uma beleza claramente mestiça.Carlos Antonio é um belo bailarino, negro, alto, de rosto e corpo belíssimos, Wagner Schwartz é loiro, igualmente alto, e de olhos incrivelmente azuis, e eu, bem, eu sou um pouco de tudo isso junto, e nada disso de fato, como Rachid sou claramente mestiço: pele clara, cabelos negros, com uma forte mistura indígena e negra, assim me percebo. Estava então formado o caldeirão brasileiro que iria sacudir a Europa, passamos por muitas cidades e países, até que no inverno europeu de 2006 o meu tempo se fez tão cinza quanto o céu de Paris.
Era início do ano, Wila acabara de voltar de férias para o Brasil, ela havia passado todo o fim no anterior comigo na cidade luz, e voltara grávida. Não preciso dizer que a combinação solidão + frio + saudade, me fez cair de cama na cidade que naquele momento não parecia nunca ter luz, quanto mais ser cidade-luz.
E da mesma forma que Wila me ligou para me falar da novidade da gravidez, e me encher de uma energia que poucas vezes eu lembro ter sentido igual, ela me ligou dizendo que havia perdido o bebê, então juntou-se em  mim solidão + frio
+ saudade + desolamento, em poucos dias, mais uma vez o céu pesaria ainda mais, em outro telefonema recebo a notícia da morte de um amigo querido: Acleilton Vicente, um bailarino e circense de Fortaleza, nossa, aquilo foi me enfiando mais e mais na cama fortalecendo a sensação de solidão + frio + saudade + desolamento + depressão, o tempo simplesmente não passava na Europa, e o sol parecia que não lembrava daquela cidade nunca. Meses e meses de profunda tristeza, eu apenas tinha um pouco de alívio quando viajava, ou quando encontrava algumas pessoas com quem trabalhava: os franceses e os brasileiros. Mesmo triste, as viagens me enchiam de excitação pelo novo, como só a Europa em mim faz.
Voltei ao Brasil, e depois a Paris inúmeras vezes para cumprir agenda da turnê, que parecia não ter fim. Nessas outras vezes devo dizer que tudo foi muito diferente, já habituado a vida lá, era cada vez mais difícil voltar ao Brasil.
No entanto, aos poucos fui voltando, enfim aqui, enfim retomando os meus próprios projetos, ainda no final de 2007, já havia se passado dois anos, conclui outros trabalhos em colaboração com outros artistas (agora brasileiros), dentre eles um que muito me preencheu de entusiasmo e excitação, a participação e inclusão do meu trabalho no filme do cineasta Rosemberg Cariry, Sirí-ará.
Junto a tudo isso eu sentia que vinha um grande período difícil pra mim. Lidar com muita pressão, com a expectativa dos outros em relação ao meu trabalho, uma louca separação da Wila, que durou exatos cinco meses, mais uma vez voltar para o nosso lar, depois retomar o trabalho da companhia, e aí uma estória que começou como brincadeira, entre eu, Wila e um amigo, e que virou paixão, amor, desespero, e mais depressão... Parece-me mesmo que ela nunca me deixou desde os tempos em Paris, estive de volta lá na primavera de 2009, apenas por três dias, e ainda me sentia incrivelmente mau. Eu acabara que voltar de Berlim, para duas apresentações de um novo trabalho, e havia ido para um fim de semana por lá, deveria voltar em poucos dias para a capital alemã, para enfim voltar ao meu país.
Os anos de 2008, 2009 e 2010 foram extremamente duros, cheios de dúvidas, de medo, e até de perda de lucidez, eu simplesmente não me encontrava, fazia bons trabalhos que me levavam aos lugares, fazia tudo de forma meticulosa, e sempre muito pensada, sempre penso muito antes de agir, e penso principalmente com quem quero trabalhar. Quando pensei todo o trabalho do Projeto Colaboratório, eu tinha algumas ambições muito claras, gosto da palavra ambição, porque era exatamente o que me movia, então decidi ao longo do primeiro mês com quem deveria trabalhar, estávamos todos convivendo em uma linda casa no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, éramos um grupo de vinte coreógrafos do mundo inteiro, juntos, uma verdadeira guerra de egos, mas eu sempre convivi bem com a maioria, os que  por algum motivo não tinham química comigo, eu simplesmente não me envolvia muito, apenas dizia oi, e pronto. Mas eu tive um mês para observar e ser observado, então eu poderia ter sido escolhido por algum deles para fazer um trabalho em “colaboração”, no entanto acho que naquele momento da minha vida, eu não tinha muita vontade, ou abertura para ser escolhido por alguém. Então já no primeiro dia eu mesmo comecei a fazer as minhas escolhas, comecei elegendo as pessoas mais interessantes, depois as que poderiam me levar mais longe, e por fim, assim mesmo nessa ordem, as pessoas que eu mais gostava. Eu havia ido ali por um único motivo, fazer algo realmente significante, e isso significava: não perder o meu precioso tempo com algo que não me levasse a lugar nenhum.
Acabei escolhendo uma pessoa, que aos meus olhos reunia três possibilidades eminentes: me apresentar mais uma vez em Berlim, me apresentar em um importante festival em Belo Horizonte, um dos mais importantes do Brasil, festival no qual eu ainda não havia ido, e por fim chegar em Nova York, pois ela morava lá, era mineira, e juntos teríamos a cara do “caldeirão Brasil”, a cara do que interessa lá fora.
Concluindo, outras pessoas que durante todo o processo de convivência no casarão em Santa Teresa me desprezavam por eu ser mais calado que falante, mais quieto que genial, choraram para serem aceitas no meu projeto, mas foram dispensadas sem nenhuma hipótese de ficarem, desde o começo, pois a essas alturas eu já tinha tudo na cabeça, sabia exatamente como as coisas iriam funcionar. Em meio a isso tudo, eu ia e voltava da Europa, cumprindo agendas como um chefe de estado. Então no fim do projeto, já em turnê por algumas cidades brasileiras, eu sabia que apresentara o trabalho que certamente era um dos mais pertinentes entre todos. Enquanto os portuguesinhos, e demais que faziam a turminha do primeiro mundo, apresentavam seus projetos rasos, um deles até sentenciando: Carmem is dead! Ora, quem são eles para sentenciar que Carmem Miranda morreu. Carmem nunca vai morrer, é bom que todos saibam disso: Carmem is forever!!!
Confesso que consegui quase tudo, fui ao bendito festival em Belo Horizonte, e voltei com este trabalho para Berlim, mas por uma incompetência da minha “parceira” de trabalho, não cheguei ainda em Nova York, não cheguei ainda, devo afirmar. Depois das apresentações do projeto em Berlim, nunca mais nos vimos, e nunca mais trocamos qualquer email, eu achava que era esperto, mas a safada foi bem biscate comigo quando se tratou de ir a Berlim, e eu preciso dizer que a excluí sumariamente da minha vida depois disso. Existem muitos detalhes obscuros em toda essa estória, e que por mim ficarão perdidos para todo o sempre.
Porque falei de tudo isso, se o assunto em questão é a tal da depressão? É simples,  mesmo com tudo desabando por anos dentro de mim, eu nunca me abandonei por completo, eu abandonei outras pessoas, decepcionei várias outras, mas eu nunca me abandonei, nunca me deixaria ir até o fim do poço, por todo amor que tenho a mim mesmo. Muitas pessoas que por algum motivo carregaram expectativas em relação a mim se decepcionaram, pelo simples fato de que vivo unicamente para preencher as minhas expectativas, e não as dos outros.
A experiência de amor a três que quase me matou ainda reverbera em mim, como algo tão forte como nenhum outro sentimento. Eu nunca amei nada com tanta força quanto essas duas pessoas (minha mulher e esse rapaz), nada se compara a força avassaladora desses dois amores dentro de mim, isso me arrebata.
Mas o tempo passou, fiz oito meses de analise, achando que não estaria vivo na sessão seguinte, uma vontade de não viver me tomava conta, e eu vendo o meu trabalho, a minha vida escorrer por entre os meus dedos. Passados esses oito meses, mesmo ainda muito frágil, eu já não agüentava mais aquela poltrona de consultório, e conversar sobre a minha vida com alguém que não conhecia direito. Embora eu confesse que foi aquela velha senhora que me salvou da morte em vida.
Boa parte de 2010 passei viajando por várias cidades brasileiras, fui ao Chile e estive na África, e isso foi algo que me trouxe de volta muito compromisso com o trabalho e com a minha companhia. Cada vez que estive em uma cidade diferente, e sentia o trabalho ainda chegar até as pessoas, me sentia vivo novamente, sempre me sinto vivo se estou perto de um palco, não há nada tão sublime que pensar em habitá-lo, fora a esse sentimento de amor já falado a pouco, só o desejo de querer brilhar é tão potente em mim desde que me entendo por gente.
O ano que passou, foi decisivo, eu mesmo deprimido, fui me refazendo aos poucos, me conectando mais uma vez com vida. Nesse meio tempo, mudei de casa, mudei de um pequeno apartamento em que vivi por seis anos, para uma casa espaçosa, muito agradável, e de aspecto antigo, com várias janelas, porta na sala de jantar que leva a lateral e velhos azulejos vermelhos, desses que a gente precisa encerar, para vê-los brilhando, rs. Nela há um belo quintal, como o da casa em que eu cresci, passei meses meio desligado do mundo, pensando, ponderando sobre a minha vida, enquanto isso regava, podava, via um jardim inteiro crescer, e isso foi me conectando de novo, me dando uma vontade grande de viver. O quintal da minha casa é uma grande metáfora sobre o que pode ser a minha vida. Assim como faço com ele, todo dia vou aonde tenho que ir, rego, planto, podo, tiro as pulgas e os parasitas que atrapalham o frescor da fotossíntese.

Eu desejei muito escrever esse texto antes, mas eu não me encontrava, havia em mim só uma casca de alguém que apenas fazia o seu trabalho com competência, mas e a vida? Onde estava? Que bom tê-la de volta. Se o amor não se resolveu, pelo menos ele ficou mais tranqüilo, porque a vida me chama de volta. Ela é como um jardim, precisa de cuidados diários.



Este é certamente um dos textos mais mal escritos por mim, muita informação, e sem continuidade. Sei também o quanto sou duro em algumas partes, mas isso é parte de mim, e não tudo o que eu sou. Prefiro ser assim, que ser como esses neguinhos que querem ser poéticos, que arrotam delicadeza sem parar e não escrevem nada que seja realmente de verdade. E é disso que se trata a minha vida: eu sou de verdade.



2 comentários:

  1. ai..ai...nem sei se tem que dizer algo...ai..ai...

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  2. Três dias pra conseguir concluir esta leitura! Quase não paro aqui no trabalho, mas agora concluí! Gostei desse pedaço:

    "...mas eu nunca me abandonei, nunca me deixaria ir até o fim do poço, por todo amor que tenho a mim mesmo. Muitas pessoas que por algum motivo carregaram expectativas em relação a mim se decepcionaram, pelo simples fato de que vivo unicamente para preencher as minhas expectativas, e não as dos outros."

    Eu quero ser poético, Fauller. Faz bem pra quem eu faço bem e funciona naturalmente, sem tanta premedição. E eu gosto de arrotar delicadeza, faço o possível. Mas aí é que tá: o que é a delicadeza pra ti? Delicadeza, uma vez, ouvi que era "assobiar com o coração". Eu quero ser poético e arroto delicadezas. Porém, assim como você eu também "nunca me abandonei, nunca me deixaria ir até o fim do poço, por todo amor que tenho a mim mesmo", e as delicadezas que solto são muito minhas, e vem de mim pra mim mesmo. E o problema - que é também vantagem - é que as pessoas, às vezes, sem querer, de metidas, acabam sendo atingidas pelas delicadezas que saem de mim. Bem,e é nessa hora que eu crio laços.

    Que sejam lindo os teus jardins.

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