sábado, 24 de dezembro de 2011

A Nudez como Proposição Estética e Política


Não ao nu artístico;
Não ao nu singelo;
Não ao nu com mensagem;
Não ao nu sagrado, impalpável, e inalcançável.
Nu é nu
Uma sentença?
Talvez, mas defender a nudez apenas para ser apreciada como objeto de arte, parece sentença ainda maior.
Constantemente nos fazem elogios feitos com a maior boa vontade a respeito do meu trabalho, entre tais, um me faz tremer na base, justo quando escuto: amei o seu trabalho, a nudez foi trabalhada de forma tão artística... Há outro exemplo que considero ainda mais grave: achei lindo o seu espetáculo, a gente nem percebe a nudez.
Primeiro; não concordo com a possibilidade de usar a arte como pretexto para lidar com uma questão que é nata do ser humano como a nudez, eu não trabalho a nudez, eu vivo a nudez, eu, nós, somos nus. Que tal olharmos para si e percebermos essa condição? A nudez é uma condição do homem, como estar vestido.
Segundo; é no mínimo delicado ouvir de alguém que assistiu a um trabalho de quarenta minutos com quatro pessoas nuas, que ele não tenha percebido a nudez. Será que não teria algo de errado aí¿ Concluo, relacionar nudez e arte é um passo imediato, talvez uma forma de fuga, como não conseguimos lidar com nós mesmos, precisamos da arte como uma possibilidade de aceitação. Aí talvez fique claro que só conseguimos olhar a nudez como algo “digerível” através da arte.
Buscamos outra forma de reaproximação daquilo que nos é dado quando nascemos, e que é retirado logo em seguida: o direito de permanecer nus. Então a arte, provavelmente a manifestação mais forte no homem além da cultura, quando se fala em organização e manifestação do pensamento na sociedade, fica mesmo com o peso de captar tudo que é brutalmente tolhido.
Durante anos a nudez no espetáculo De-vir não foi o assunto mais importante em questão, mas com o passar do tempo, com todos os fedbacks, com a diversidade de reações das platéias, das cidades, dos países por onde passamos, a nudez tornou-se um ponto de grande relevância dentro do trabalho da Dita, um assunto que não deve ser ignorado, ou muito menos ter sua importância diminuída.
Dentro da companhia passamos a lidar com ela de uma forma amplificada, não a considerando somente nos momentos de ensaios. Existe uma necessidade ética com a proximidade do assunto em questão, e este assunto pode ser qualquer outro: as nossas relações com a nossa cidade, e com as cidades, as relações pessoais e de trabalho com o outro, a relação consigo mesmo, e relações políticas. Tudo é político, viver é político, concluímos.
Em um debate em Vitória, logo após uma apresentação do espetáculo, uma garota se contorceu na platéia, ensaiou falar e desistiu, depois um rapaz chegou até nós e nos contou que ela só queria saber o ‘por que de não estarmos depilados’. A pergunta não foi feita diretamente a mim, mas tentei respondê-la comigo mesmo, uma vez que se dependesse de mim as casas de depilação já teriam falido. Então pensei: eu usaria as palavras de um amigo ator, também de Vitória, respondendo em tom debochado a mesma pergunta feita pelo ginecologista de sua mulher: diga a ele que eu não tenho tendências pedófilas, eu quero uma buceta de mulher adulta.
Logo se a pergunta tivesse sido feita na ocasião do debate, eu responderia: eu sou um homem adulto, e adultos têm pelos.
Mas talvez seja leviano permanecer neste lugar de pensamento em um discurso que não deve ser sobre uma questão de gosto pessoal. A razão de não nos depilarmos também é uma escolha estética, como seria se estivéssemos todos depilados. O fato de não retirar os pelos nos aproxima do aspecto mais natural do corpo, e também nos aproxima da nossa condição de animais (condição que negamos a cada momento). Qualquer instância, ação, secreção, ou analogia que nos aproxime aos animais irracionais é imediatamente negada pelo homem. E talvez por isso mesmo seja uma das leituras mais rápidas que o público faça conosco em cena, o público se reconhece em nós, e logo se reconhece animal também (ao falar que as formas criadas no espetáculo lembram bichos.
Partindo deste ponto, fico pensando que ao apresentarmos o “De-vir” e outras peças da Cia. Dita, lidamos com o corpo como um todo, sem qualificar nenhuma parte mais importante que a outra, por exemplo: aqui o cu é tão importante quanto a boca, cada um com a sua função, de forma que um não seja menos importante que o outro. Enquanto a boca é o órgão responsável pela ingestão dos alimentos, é um dos canais da sexualidade no corpo, e responsável pela verbalização do pensamento, o cu é o responsável pelo termino do processo de digestão, logo cu e boca são pontos extremos, e o cu é também um importante canal da sexualidade humana. Então não há outra saída a não ser lidar com o corpo sem grandes pudores, e o fato de mantermos os pelos reforça o olhar sobre os nossos paus, cus e bucetas (não os deixando em último plano). Ao depilar o sexo o tornamos visualmente mais suave, mais discreto, e o que pretendemos aqui é justo colocá-lo em evidência, como parte de um todo.  
Pensar estética, como se pensa política, aqui potencializar a própria exposição do corpo para potencializar o discurso político, e nada disso seria importante se não fosse o desejo maior: de ser de fato o que cada um é.
O pensador francês Jacques Ranciere, afirma que estética e política são dois campos que não se separam, para ele a política é essencialmente estética, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. O filosofo desenvolve uma teoria em torno da “partilha do sensível”, conceito que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais.
A primeira coisa que solicito de um bailarino que chega à companhia para dançar, é que ele não minta para si, depois como pessoa que conduz a proposta de um trabalho, eu jogo uma serie de possibilidades para que ele se sinta mexido e provocado; eu provoco para ser provocado, e daí em diante esta pessoa passa a trazer material de sua vida para a sala de aula, para dentro do trabalho: a forma como ele vê o mundo, como faz para deslocar o seu olhar diante de algo que normalmente não é visto com clareza pelos outros. Voltando ao Ranciere, eis aqui um pouco da percepção do “sensível”.
O corpo não seria uma questão tão importante no meu trabalho se não fosse em minha vida, costumo dizer que é um acerto de contas com a minha mãe, ela não me deixava dançar quando criança nas festinhas de aniversário, temia que eu pudesse me soltar demais, dá pinta, me vinguei dançando pelado, me expondo ao máximo, e pondo a minha nudez em questão.  É claro que isso é apenas uma brincadeira, trago em meu corpo questões mais pertinentes do que um simples acerto de contas com a minha mãe.  E a razão para defender o nu apenas como nu, já é uma velha questão.
No começo da década eu me sentia absolutamente bombardeado por muitos espetáculos que lidavam com a questão da nudez em Fortaleza, espetáculos que passavam pela Bienal de Dança do Ceará, espetáculos de teatro, e vários trabalhos locais. A maioria me despertava certa resistência, lidando com a nudez de forma bastante superficial, sempre colocando o corpo entre uma meia luz, no estilo ‘mostra mas não muito’, ou usando o mesmo corpo como chamariz de bilheteria. Mesmo muito jovem, eu recebia aquilo como um desserviço a sociedade.
Pensem comigo, as pessoas já recebem uma educação completamente equivocada, castradora, e vão se distanciando da própria matéria com o passar dos anos em suas vidas, e ainda têm que apreciar espetáculos que lidam com uma questão que é um dos grandes tabus da sociedade, de forma que não é real. Foi através desses incômodos que eu me senti estimulado a pensar o corpo de forma diferente da qual fui educado a pensá-lo.
E o espetáculo De-vir foi um grande passo dentro desse processo de me repensar, e de me recolocar diante do outro. Depois do De-vir, veio o INC. (eu e Wilemara Barros, cada vez mais inflamados com os nossos discursos), e depois “O produto de 1ª”, e por fim o “L’après Midi d’un Fauller”, todos trabalhos em que a recorrência da nudez é diretamente relacionada a política. E isso só é possível com um grande esforço de perceber o movimento da vida, o movimento das coisas.
Não há escolhas estéticas nestes trabalhos que não se relacionem com o que somos e pensamos. Nós só dançamos o que pensamos!
Volto mais uma vez ao Ranciere: estética e política são formas de organizar o sensível: de dar a ver, de dar a entender, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos.
Ao falarmos de nudez, ao abrirmos espaço para uma discussão em torno dela, abrimos também espaço para refletirmos sobre uma sociedade que se conhece pouco; que desenvolveu a física, as bio-políticas, a bioarte, a bio, a bio, a bio, pensamos em todas as variações de bio, e nos considerando assunto a parte, quando não superiores a todo entendimento do que se tenha por bio.
Também escuto bons comentários sobre o meu trabalho, desses que a gente quer levar pra casa, guardar de forma especial, certa vez um conhecido após nos assistir me disse: Fauller, eu nunca havia imaginado o meu corpo dessa forma, e eu me reconheci totalmente através dos corpos de vocês, cheguei em casa, e tentei fazer uma posição do balé no espelho (meu amigo é um homem comum, estatura mediana, peso acima dos setenta e cinco quilos,  e hetero), logo isso me deixou com a sensação de que o nosso trabalho tem, de alguma forma, a função de aproximar as pessoas delas mesmas, pois talvez elas ainda não tenham tido a oportunidade de se permitir. E isto é uma grande questão para nós, que trabalhamos diretamente com o corpo, envolve além de política e estética, uma questão ética. Eduardo Kac (um grande performer e bio-artista brasileiro) chamaria de ética performativa: ela nasce junto com a própria concepção da obra.
Eu chamaria de “seja sem medo”. Se pudesse escolher um pilar que nos move dentro da sociedade, desde que acreditamos que a primeira maça foi mordida; alem do amor, do sexo, e do dinheiro, eu escolheria o medo. Somos todos movidos pelo medo, a potência do medo em nossas vidas é avassaladora. Somos do signo de medo com ascendente em medo, e lua em medo.
Portanto, a única forma de desenvolver o sensível é através do desnudamento da alma. Um corpo nu não revela necessariamente o desnudamento de nada, tão pouco do pensamento, e-ou do desejo.
É preciso criar formas de resistência e de existência.

O bailarino Lairton Freitas em ensaio de "De-vir".


A Cia. Dita em ensaio em sala de aula.


Este texto foi escrito originalmente para o "Pensamento Giratório", ação do Projeto Palco Giratório Nacional SESC. Ele foi ponto de partida para uma série de debates e discussões em nossa turnê nacional 2011.


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