sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Corpo - Cidade



Queridos,
Há tempos vinha desejando postar esse texto delicado e generoso da Izabel Gurgel (diretora do Theatro José de Alencar, nossa principal casa de espetáculos no Ceará).
Este texto se relaciona diretamente com uma série de coisas que penso diariamente sobre a minha Fortaleza, sobre a minha relação corpo-cidade, tão presente no meu trabalho, e no meu discurso enquanto artista, enquanto cidadão.
Leiam, por favor, é um precioso texto, ao qual sempre recorro para clarear algumas ideias sobre o meu lugar de agente participativo na sociedade.

Um abraço!

Quando a gente gosta, cuida

Dia 8 de março de 2007 iniciamos com Silêda Franklin uma gestão no Theatro José de Alecar (TJA). Olhamos a Praça José de Alencar como se fosse a primeira vez. De-so-la-dor. Ouvi Silêda: “Pior do que está não fica”. Em silêncio, memória acionada do que vivi na região desde menina, lembrei do que digo que aprendi com a literatura, mas é do tutano do existir: sempre pode piorar.
O que vivemos hoje no Centro é regurgitação do que engolimos na cidade toda. Fortaleza lembra uma música de Caetano: parece construção e já é ruína. Digo com dor, escrevo com dó. De nós mesmos, sobretudo (é horrível sentir pena de si). Somos uma cidade que destruiu as calçadas. Como vislumbrar horizonte quando se perdeu o chão? Para onde quer ir uma cidade que sequer pode andar? Que cidade é essa cuja população transita, parece que sem estranhamento, como uma horda miserável de predadores de si, a topar um acordo mútuo de desmonte da vida em comum, a produzir e viver em meio ao lixo nas ruas, nas praias, nas praças, sem saber mais se indignar? Se não temos chão, não dá para caminhar mirando o que há de vir ou apreciando a paisagem. Só se olha para baixo. A visão encurta, o corpo desaprende a fruição do espaço, a ver o outro. Viver é só uma tentativa de escapar. Qualquer movimento é travessia sob ameaça. Não à toa, cruzamos os dias tomados pela sensação de exaustão.

Vigio-me para não perder a vergonha, o desconforto que sinto ao andar na cidade. Sim, alerta contra a banalização do padrão atual do nosso cenário, mais e mais tornado norma, amputando-me de experiências simples de vida urbana que me foram tão corriqueiras.

Não lamento supostas perdas em relação ao passado. Assusta-me a precariedade do presente e a destruição de futuros. Sei da fúria dos nossos modos de existir, posso senti-la com tanta argúcia quanto cada gesto de delicadeza, miúdo que seja. Corrijo: gentileza nunca é pequena. É imensidão. Talvez tenhamos desaprendido o exercício de ser grande, de estar à altura da vida.

Que lugar potente o Centro de Fortaleza! Pode nos dizer sobre como vivemos (n)a cidade. Vamos cuidar do Centro, da cidade. É cuidar de si: quando a gente gosta, cuida. Por isso escrevo. Por isso iniciamos junto com a gestão do TJA uma série de encontros com equipes de instituições culturais da área, batizados de Viva o Centro! Um desejo manifesto de vida. Só isso. Sim, escrevo fragmentos de um discurso amoroso sobre o lugar onde vivo.

Compreendo a região como a que mais explicita Fortaleza. Perceba: são fragmentos tocados pelo desespero. Cansei do desespero mudo mesmo sabendo o quão eloquente pode ser o silêncio. Sei que uma outra experiência de cidade é possível e ela não pode descartar o Centro ou transformá-lo em aterro sanitário das nossas relações sociais. Está à flor da pele nossa patologia da vida em comum. Você não acha que abrir mão de uma região que tem o Passeio Público, o TJA, o Instituto Histórico do Ceará, vista para o mar ao final de cada rua no alto da colina que deixamos de ver, diz de uma certa esquizofrenia, algo partido? Mas a vida não cessa de brotar. É como a poesia. Tão necessária em tempos de penúria quanto na abundância. Sabe que o ipê da Praça José de Alencar ainda floresce em meio à aridez da terra devastada?







Imagens feitas pelos alunos da residência coreográfica Corpo: abrigo da cidade. Proposta por Fauller.
A residência foi uma ação do Núcleo de Formação Pedagógica do Centro Dragão do Mar, em 2010.


Nenhum comentário:

Postar um comentário