quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Trocando em miúdos: temos pares no mundo



Segundo Fauller, se não me falha a memória, entre as coisas que movem o homem, além do amor, do sexo e do dinheiro, está o medo. De acordo. Muito mais do que nos imobilizar, como pode parecer à primeira vista ou ao senso comum, o medo nos move. Às vezes, nos move a atitudes defensivas, reativas. Em outras ocasiões, pode nos colocar para diante, pode nos lançar ao mundo – uma das muitas coisas preciosas que aprendi com o teatro foi: transformar o medo em combustível, me jogar à cova dos supostos leões quando o tremor do medo se instala, porque é sempre maior o medo expectativa do perigo do que o perigo em si.
Quando fomos convidados para dividir um dia com outro grupo que não conhecíamos, tive medo.  E aqui é preciso parar por um minuto para alguns esclarecimentos. O “nós” diz respeito ao Grupo Z de Teatro, do qual faço parte. O “outro grupo que não conhecíamos” é a Cia Dita, que veio com seu trabalho De-Vir, em circulação por várias cidades do país, participar em Vitória da Aldeia SESC de Teatro e Dança. A Aldeia, por sua vez, é uma mostra da produção local em artes cênicas, mas que traz, também, espetáculos convidados de outras partes do Brasil, como é o caso da Dita. E entre as atividades da Aldeia, há o Trocando em Miúdos, em que um grupo local e um convidado têm a possibilidade de passarem um dia juntos, em intercâmbio. Daí o convite para passarmos o dia, nós do Grupo Z, com outro grupo que não conhecíamos, a Cia Dita.
Feitos os esclarecimentos, retomemos: quando fomos convidados para dividir o dia com outro grupo que não conhecíamos, tive medo. Na verdade, tive medos. Um dia pode ser um período longuíssimo se a companhia for desagradável. E se não houvesse afinidade, e se não nos entendêssemos, e se não achássemos uma língua comum, o dia seria interminável. Além disso, havia outra coisa. A Dita foi apresentada para nós como uma companhia de dança. Nós, no Grupo Z, temos investigado relações possíveis entre teatro e dança, interseções possíveis. Temos feito alguns trabalhos nesse sentido – e faremos, certamente, outros. Mas não somos um grupo de dança. Nossos trabalhos nessa linha são rotulados, na maioria das vezes, como dança pelo pessoal do teatro e como teatro pelo pessoal da dança. E já houve quem não identificasse tais trabalhos nem com uma coisa, nem com outra. E isso, para nós, não é problema – não estamos preocupados com isso. Na literatura, fala-se sobre como os gêneros se tornaram híbridos e como já não é possível, em alguns casos, determiná-los – e tudo bem. Nas artes visuais, os limites borraram – e tudo bem. Por que é que nós, nas artes cênicas, precisamos de fronteiras tão bem postas? Não precisamos, eu acho e achamos nós do Grupo Z.
Mas talvez aquele pessoal que não conhecíamos viesse entrincheirado numa concepção de dança que não permitisse outros olhares. Sabíamos que eles tinham o nu como proposição em seu trabalho – e talvez fosse uma proposição chatinha: talvez viessem com um papinho de nu artístico; talvez usassem os corpos sem roupas como chamariz de público e bilheteria; talvez viessem com a história furada de que o nu precisa de uma justificação muito grande para que possa estar em cena. E, sobretudo, talvez houvesse o medo maior e inconfessável: e se não gostarem de mim?
No Grupo Z, estamos trabalhando na montagem de In Sone. Nesse espetáculo, o espaço da cena é um grande colchão branco. Quando nos perguntávamos o que propor ao pessoal da Dita, debochei: eles vêm com o nu, nós temos um colchão: vamos fazer sexo, claro! O deboche é, em mim, uma forma de lidar com o medo. Não se trata de tentar fazê-lo pequeno, de subestimá-lo. É a tal estratégia de me lançar, na crença de que a expectativa do perigo é sempre mais pesada do que o perigo em si.
Apresentaríamos nosso espetáculo, o Incessantemente, na segunda e eles, na terça, o De-Vir. Assistiríamos aos trabalhos uns dos outros e, na quarta, teríamos o dia de intercâmbio. Antes de tudo isso, no entanto, haveria um encontro aberto, como parte da programação, com a Dita, que falaria do “Nu como proposição estética e política”. Fui eu ao tal encontro – o resto de nós do Z estava se preparando para a apresentação da noite. Entrei na sala e já os vi lá, a postos. Tenho a imagem como fotografia. Da esquerda para a direita: Marcelo, Wila, Henrique e Fauller – ainda não sabia os nomes, via-os apenas. E eram quatro figuras fortes. Não apenas pelos notebooks sobre as coxas, pelos corpos de quem dança e faz aula de clássico. Sobre tudo isso, havia os olhares – fortes.
Eu podia me sentar ao fundo, assistir a tudo incógnito, me esconder. Mas já disse: diante do medo, prefiro me expor. Sentei-me, no círculo organizado pela produção do evento e desorganizado por quem chegava, ao lado deles – e de nada teria adiantado me sentar ao fundo, porque antes que tudo começasse, Fauller perguntou se havia ali alguém do Grupo Z. E depois que me identifiquei, ele começou a leitura de seu texto. E o texto começava dizendo que não acreditava em nu artístico. Respirei. Fui ouvindo tudo e respirando cada vez mais tranquilo.
No texto, havia provocação, havia raiva, havia generosidade, havia proposta, havia consistência, havia medo – foi nesse texto que Fauller disse do medo como, além do amor, do sexo e do dinheiro, uma força que nos move. E eu não pude deixar de me lembrar, àquela altura, do “Congresso Internacional do Medo”, do Durmmond: “[...] o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, / o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, / cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, / cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte. [...]” Eu tive vontade, àquela hora, de interromper a leitura falando alto o poema do Drummond. Porque havia ali, naquele texto que eu ia ouvindo e conhecendo, diante do medo, a atitude de se expor, o tomar atitude. Daí, me parecia que me levantar e dizer o poema em pé na cadeira, inusitado, seria o ato que daria corpo ao que o texto dizia a mim. Nem tanto pelo que diz o poema, mas pelo acontecimento. Obviamente, me contive. Em algum momento, isso virará cena. O fato é que, em seguida, vieram os textos do Henrique e do Marcelo e o depoimento da Wila. E eu ia respirando cada vez maior e, ao final, já não havia medo. Eu já gostava de tudo aquilo, eu já sabia que o resto do Grupo Z gostaria também.
Entre esse momento e a nossa apresentação, vi os quatro conversando à porta do teatro. Aproveitei para perguntar se, de acordo com a proposta de trabalho que eles traziam, haveria necessidade de um espaço específico, uma sala de dança. Porque, afinal, temos ensaiado na Casa nº 16 – uma casa, com seus cômodos e quintal –, que nos abriga muito bem, mas poderia não dar a condição de trabalho necessária ao que eles trouxessem. E então soube que eles não tinham uma proposta fechada, queriam nos conhecer primeiro, ver o que aconteceria. Sorri, feliz – já começávamos a falar a mesma língua. Propus que passássemos a primeira parte do dia na Casa nº 16 e, na segunda metade, fôssemos para uma sala de dança. Responderam que talvez gostassem tanto da tal casa que não conheciam que seria possível que acabássemos ficando por lá. E ali eu já soube que o dia seguinte seria bom.
Houve, à noite, o nosso espetáculo. Foi, para nós, desastroso. Por uma série de problemas, apresentamos algo ruim, mal cuidado – apesar de todos os cuidados da organização da Aldeia, que nos atendeu em tudo o que precisávamos. O espetáculo da Dita, em contrapartida, na noite seguinte, foi impecável. Quando digo que foi impecável, não me refiro apenas ao aspecto técnico. Falo, sobretudo, de ter reconhecido no trabalho o corpo do que estava proposto nas falas que tinha escutado no dia anterior. E é bom, é muito bom quando a gente vê que um discurso do qual a gente gostou não é um discurso vazio, que o discurso verbal encontra eco no discurso do trabalho, que o discurso tem corpo, que os corpos têm discurso, que os discursos têm unidade – que é diversa em suas possibilidades de leitura.
Então, no dia seguinte, encontramo-nos – Z e Dita. Apresentamos a Casa nº 16, aclimatamo-nos. Sentamo-nos no quintal, sobre esteiras e caixotes. E falamos. Sobre dança, sobre teatro, sobre processos, sobre intimidades, sobre o que tínhamos visto nos trabalhos uns dos outros, sobre a casa, sobre casas, sobre cidades, sobre espaços, sobre encontros, sobre fotografias, sobre imagens, sobre arte, sobre trabalhos anteriores, sobre o que nos move, sobre o que nos imobiliza, sobre gente, sobre nós.
Pausa para o almoço que não foi pausa, porque continuamos a falar. Do caminho da casa ao restaurante, no restaurante, no caminho de volta. De novo na casa, abrimos o colchão e nos espalhamos sobre ele e continuamos.
Perguntávamos, respondíamos, falávamos o que não tinha sido perguntado. Dividimos questões e descobertas, dúvidas e convicções. E foi bom.
Se você leu este texto até aqui, estará chateado agora: muito preâmbulo e muita verborragia para chegar ao encontro e, quando o encontro chega, tudo é sucinto. Dou a mão à palmatória: é mesmo isso. Tudo o que houve antes pode ser dissecado, mas não é possível, para mim, dissecar o encontro em si, assim como não se pode, ainda que se pormenorize, narrar de verdade um encontro amoroso. Se você não esteve lá, se você não era um dos apaixonados, não saberá. Foi um encontro amoroso.
Des(en)cobrir o outro que se temia, des(en)cobrir-se aos olhos do outro, conhecer o processo de outro artista e dar a conhecer o seu, ver e ser visto naquilo em que se acredita – tudo isso é um grande prazer. Deparamo-nos com gente o tempo todo e acredito, mesmo, que tudo é encontro. E acredito que todo encontro, mesmo aquele com o cara que nos esbarra no ombro quando atravessamos o sinal fechado, nos diz algo sobre nós mesmos. No entanto, há encontros em que nos vemos, além de ver o outro, mais claramente. Se aqueles olhos que eu ainda não conhecia pareceram fortes quando os vi pela primeira vez e, em seguida, me reconheci neles, sou um homem mais forte.
Se os trabalhos completamente díspares encontram eco um no outro, temos uma língua comum. Se o medo virou amor, viver continua possível. Se nos reconhecemos uns nos outros acima das diferenças técnicas, ainda temos olhares e movimentos capazes.
Ao final do dia, no lusco-fusco – esse momento de transição, esse devir – fomos ao gramado experimentar outras coisas. Ao longo do dia, tínhamos descoberto, sob nossas aparentes diferenças, muitas coisas em comum, como a origem imagética dos trabalhos, o recorte fotográfico dessas imagens; falamos de Calvino e Leminski, de antropofagia e tropicália, de Duchamp e romantismo; de Fortaleza e de Vitória; de franceses e tupiniquins; de falsos pudores e limitações pessoais; rimos muito e sorrimos o tempo todo. Ao perceber o nu da Dita como – entre outras proposições – uma opção pelo essencial, vi que fazemos, nós do Z, uma opção pelo excesso. Não o que sobra, mas tudo o que pode agregar-se, tudo o que pode se sobrepor, compondo a teia de signos. No final das contas, o desnudamento da Dita e a sobreposição de elementos do Z são, muito diversamente, a mesma coisa: um ato de exposição, uma tentativa de falar. Diante do amor, do sexo, do dinheiro e do medo, um jogar-se ao mundo em direção ao outro.
Ao final do dia, no lusco-fusco – esse momento de transição, esse devir – fomos ao gramado experimentar outras coisas. Fauller conduziu o trabalho: saudação ao sol, deslocamentos sobre apoios diversos, velocidades distintas, planos diversos, olhos nos olhos, aproximações e distanciamentos, corpos, virarmos bichos, pulsos, normalizar a respiração, círculos, uma lua linda, linda, linda, linda, lua. Olhos, olhos, olhos, olhos. Acho que nem tivemos tempo de dizer a eles que, de forma diversa, aquilo se parecia muito com o nosso treinamento, e que aquela semelhança ratificava a identificação que já tínhamos sentido.
O dia, que poderia ter sido interminável, se não tivéssemos afinidades, se não falássemos a mesma língua, se não gostássemos uns dos outros, foi curto. Então, continuamos à noite, na mesa de bar na rua da lama. A noite foi curta também. Uma semana teria sido curta: queria falar mais, ouvir mais. Queria saber umas coisas e contar outras. Queria dirigi-los e ser dirigido por eles. Queria propor uma criação conjunta. Queria muitas coisas.
Eu costumo dizer que, fazendo o que fazemos, com todos os problemas de grana, de gana, de incompreensão, de preconceito, de políticas públicas e etc, etc, etc, precisamos, de tempos em tempos, lembrarmo-nos, a nós mesmos, o porquê de fazermos o que fazemos. Caso o encontro com a Dita não tivesse servido para mais nada – e serviu para muita coisa –, teria servido, minimamente, para isso: para nos lembrarmos do porquê. E lembrarmo-nos que temos pares nos mundo.

Por Fernando Marques




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